quinta-feira, 12 de junho de 2014

Facultativo

Estatuto dos Funcionários, artigo 240: “O dia 28 de outubro será consagrado ao Servidor Público” (com maiúsculas).
Então é feriado, raciocina o escriturário, que, justamente, tem um “problema” na pauta para essas emergências. Não, responde-lhe o governo, que tem o programa de trabalhar; é consagrado, mas não 
é feriado.
É, não é, e o dia se passou na dureza, sem ponto facultativo. 
Saberão os groenlandeses o que seja ponto facultativo? (Os brasileiros sabem). É descanso obrigatório, no duro. 
João Brandão, o de alma virginal, não entendia assim, e lá um dia em que o Departamento Meteorológico anunciava: “céu azul, praia, ponto facultativo”, não lhe apetecendo a casa nem as atividades lúdicas, deliberou usar de sua “faculdade” de assinar o ponto no Instituto Nacional da Goiaba, que, como é do domínio público, estuda as causas da inexistência dessa matéria-prima na composição das goiabadas.
Hoje deve haver menos gente por lá, conjeturou; ótimo, porque assim trabalho à vontade. Nossas repartições atingiram a tal grau de dinamismo e fragor, que chega a ser desejável o não comparecimento de 90 por cento dos funcionários, para que os restantes possam, na calma, produzir um bocadinho. 
E o inocente João via no ponto facultativo essa virtude de afastar os menos diligentes, ou os mais futebolísticos, que cediam lugar à turma dos “caxias”.Encontrou cerradas as grandes portas de bronze, ouro e pórfiro, e nenhum sinal de vida nos arredores. Nenhum – a não ser aquele gato que se lambia à sombra de um tinhorão. Era, pela naturalidade da pose, dono do jardim que orna a fachada do Instituto, mas – sentia-se pela ágata dos olhos – não possuía as chaves do prédio.
João Brandão tentou forçar as portas, mas as portas mantiveram-se surdas e nada facultativas. Correu a telefonar de uma confeitaria para uma residência do chefe, mas o chefe pescava em Mangaratiba, jogava pingue-pongue em Correias, estudava holandês com uma nativa, na Barra da Tijuca, o certo é que o telefone não respondeu. João decidiu-se a penetrar no edifício galgando-lhe a fachada e utilizando vidraça que os serventes sempre deixam aberta, na previsão de casos como esse, talvez. E começava a fazê-lo, com a teimosia calma dos Brandões, quando um vigia brotou na grama e 
puxou-o pela perna.
- Desce daí, moço. Então não está vendo que é dia de descansar? 
- Perdão, é dia em que se pode ou não descansar, e eu estou com o expediente atrasado. 
- Desce – repetiu o outro com tédio. – Olha que te encanam se você começa a virar macaco pela parede acima.
- Mas, e o senhor por que então está vigiando, se é dia de descanso? 
- Estou aqui porque a patroa me escaramuçou, dizendo que não quer vagabundo em casa. Não tenho para onde ir, tá bem?
João Brandão aquiesceu, porque o outro, pelo tom de voz, parecia disposto a tudo, inclusive a trabalhar de braço, a fim de impedir que ele trabalhasse de pena. Era como se o vigia dissesse: 
“Veja bem, está estragando meu dia. Então não sabe o que quer dizer facultativo?” João pensava saber, mas nesse momento teve intuição de que o verdadeiro sentido das palavras não está no dicionário; está na vida, no uso que delas fazemos. Pensou na Constituição e nos milhares de leis que declaram obrigatórias milhares de coisas, e essas coisas, na prática, são facultativas ou inexistentes. Retirou-se, digno, e foi decifrar palavras cruzadas.
 
Carlos Drummond de Andrade

Um comentário:

Gustavo disse...

Facultativo obrigatório!

=*

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